15 julho 2005

Pé Sujo

Já contei aqui de onde vem o nome do blog, herança do meu avô, lusitano de alta estirpe camponesa (ou seja, grosso feito rinoceronte ferido, mas com um coração enorme) dono de um boteco aqui em Botafogo, ao mesmo tempo minha creche e uma das minhas referências de vida. Assim, nota-se que o tema (pés sujos e cia) me é caro...

Pois hoje, n'O Globo, a boa matéria de Jefferson Lessa fala sobre os bons pés sujos do Rio de Janeiro, resistindo a invasão paulistana das redes '"Boteco Chic" (Informal, Manoel & Joaquim, Belmonte, etc), onda essa nascida aqui (com o Manoel & Joaqui, há uns 10 anos, pouco menos talvez) foi pra Sumpa, assumiu ares faxion, retornando com força. Hoje são points (ugh) principalmente dos neo-maurícios e neo-patrícias cariocas. Bom, definitivamente não são botecos. A caracterização botequinesca planejada, sua impessoalidade e padronização os colocam fora dessa classificação.

Nesse espírito, para caracterizar bem e deixar claro o que faz um Pé Sujo Crássico ser assim nomeado, seguem aqui algumas dicas para você, incauto bebedor, desavisado petisqueiro, poder reconhece-los sem medo de ser feliz:

1) Os tradicionais vidros de conserva: tremoços (o principal), cebolinhas, picles e afins. Mas apenas os procure: normalmente são tão antigos quanto o boteco e funcionam como peças de decoração!
2) Na mesma linha, os ovos coloridos. Pé sujo sem ovo colorido tem algum desvio de caráter.
3) Procure pelo oratório com o santo (padroeiro do boteco, do dono ou de ambos). Acompanhando a imagem, as indefectíveis flores de plástico desbotado ou galhos de arruda que dão o tom. Esse é um item não-obrigatório, mas atesta, novamente, o caráter do antro.
4) Procurem por new-pagodeiros em meio a clientela. Se achar algum, corra!
5) Computador: pé sujo informatizado? Nem fudendo!
6) Copos: os autênticos Nadir Figueiredo Crássicos, aqueles de médio coturno, vidro canelado, multifuncionais - servem das médias e cafezinhos as cachaças e cervejas. Desconfie se não forem os tais.
7) Voltando aos petiscos, uma forma de bolo feita as vezes de bandeja, carregada de carnes cozidas no feijão, entremeadas de democrática farofa, podem atestar a qualidade do lugar. Prove. Lembrou do feijão da vovó? Pois é, o boteco tá aprovado.
8) Procurem por um português, ou por um filho deste. Tá atrás do balcão? Então pode entrar. Também não é característica obrigatória, mas que pesa, pesa...
9) Essa é antiga, mas vale: serragem no chão é forte indicativo de botequinismo de qualidade. Prática que garante uma ambiência peculiar mas limpa. Garantia de honestidade do local.
10) Essa é óbvia: chope e/ou cerveja, servidos sempre nos supracitados copos (menores, não dão tempo para que o conteúdo esquente), devem ter a classificação cú-de-foca, ou seja, mais gelado impossível. Colarinhos honestos, que não deixam o gás escapar, em ambos os casos são extremamente recomendáveis como indicadores de competência do serviço. Novos acessórios, como os isopores individuais pra conservar a cerva, são permitidos.
11) Nessa linha, cheque a caipirinha: peça com vodka e se o balcão retrucar com um "Vodka não temos, não seinhoire", tome assento e fique tranqüilo pois o lugar tem pedigrí.
12) Banheiro, sempre um assunto delicado, mas obrigatório. Note que eu disse banheiro, no singular, já que normalmente o pé sujo só tem um para os três séquiços. Normalmente são limpos pela manhã, meia boca na tarde e uma imundície a noite. É a desconfortável desvantagem do pé sujo, mas autentica o lugar. Rola uma serragem básica também, mas nada garante a higiene local. Nó no pinto, rolha na perseguida e vá em frente.
13) Cozinha: pequena e apertada, com panelas bem enegrecidas pelo uso, assusta um pouco, mas dá pra sentir que rola uma preocupação com a honestidade dos comes do local. Desconfie se o lugar tiver "cozinha ampla e moderna". O portuga não é arquiteto, logo...
14) Mesas e cadeiras preferencialmente de madeira, mas não é obrigatório. Podem ser as do patrocinador do freezer tambem que não compromete.
15) Procure pelo quadro negro (pode ser patrocinado também) com o cardápio do dia. Pé sujo sem quadro negro, sei não...
16) Falando em cardápio, procure pelo dito cujo e observe se ali estão os consagrados pratos de nossa culinária botequinesca: rabadas, feijoadas, feijão branco com dobradinha e que tais. desconfie se tiver alguma coisa fora desse circuito e corra e se tiver alguma opção light. Light e boteco são expressões do vernáculo que não podem coabitar o mesmo contexto.
17) Decoração: se for planejada, esquece. Tem que ter os bons e velhos apetrechos de boteco (maquina registradora antiquada, máquina de café pingado, vidros de conserva, mesas e cadeiras toscas, e etc.) fazendo plano pro fundo de azulejos, normalmente bicolores e dispostos em diagonal. Desconfie do uso excessivo de aço inoxidável também. Espelhos, sempre pequenos e normalmente na saída.
18) Café é pingado. Expresso em botequim é a mesma coisa que encontrar tremoços no Armazem do Café. Não rola.
19) No quesito originalidade, procure por um pé de comigo-ninguém-pode ou de espada-de-são-jorge. Peças fundamentais das tradicionais técnicas administrativas que envolvem a prevenção de crises, evitando o mal dos males: mau olhado. Todo pé sujo tem uma prantinha dessas.
20) Last, but not least, paz. Entre e puxe a cadeira: se sua paz de espírito sentar na cadeira ao lado, esse é o lugar. Relaxe e aproveite.

n.e.: As dicas acima se aplicam aos mais comuns botecos, os pés sujos. Com poucas adaptações, podem valer para outros estabelecimentos correlatos, como os cú-de-fora e os cospe grosso.

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