16 março 2002

Segue artigo de Antônio Veronese, publicado dia 30 de janeiro de 2002, em O Globo.
Por causa deste artigo, Veronese foi intimado a depor ontem na Delegacia de Repressão a Entorpecentes, por especial solicitação do Governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro. Veja o artigo e em seguida carta distribuída hoje por Antônio Veronese.

TRÁFICO NO LEBLON


"Procura-se sócio para montar boca-de-fumo no Leblon"
Nesses tempos de desemprego e dificuldades, tive uma idéia que pode ser muito lucrativa e estou procurando sócios: montar uma grande distribuição de entorpecentes na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Não em cima do morro, mas aqui embaixo, ao rés do chão, numa rua nobre e de grande poder aquisitivo. Pode ser, por exemplo, na Carlos Góis no Leblon, naquele quarteirão entre a San Martin e a Ataulfo de Paiva. A presença dos cinemas e do Cliper garantem ali grande afluência de público. Lucro certo!!

Uma vez definida a localização da nova "boca" o resto é fácil... Nas duas esquinas vou postar homens armados de fuzis AR 15. Afinal, se o ponto é bom, é previsível que grupos rivais tentem apoderar-se dele. Espalhados pela quadra, atuarão meninos fogueteiros, especialmente treinados para avisar quando da chegada da polícia. Naquela pequena galeria comercial, nos fundos dos cinemas, vou instalar o depósito do pó, e na lojinha do lado, que não deve ter o ponto assim tão caro, vou montar o arsenal; armamento pesado para garantir a segurança da boca.

Para distribuição vou cooptar meninos, na faixa de oito a dezessete anos, residentes na própria área. Eles podem ser facilmente localizados nas portas dos colégios Santo Agostinho e Sant Patricks. Serão treinados e armados, devendo obediência cega ao chefe que, neste caso, serei eu.

Seus salários, vou assegurar, serão em muitas vezes maior que as mesadas que recebem dos pais; uma forma eficiente de transferir o pátrio poder para o chefe da boca, quer dizer, do negócio. Ali vou mandar eu, a ferro e fogo, o novo chefe da Carlos Góis!

Quem ousar desrespeitar minhas determinações será sumariamente eliminado.

Como decorrência natural deste poder, terei acesso irrestrito a todas as mulheres do quarteirão, independentemente se são casadas, solteiras, menores ou virgens. Como contrapartida distribuirei dez por cento do lucro à comunidade, dedicando especial atenção aos doentes e velhos da área. Assistencialismo de ocasião.

Se o pessoal do vigésimo terceiro Batalhão ameaçar atrapalhar o negócio, tentarei subornar seu comandante, de forma que trinta ou quarenta por cento do faturamento seja desviado para engordar a parca folha de salários da tropa. Sem problemas.

Se esse tipo de negócio funciona e dá lucro em áreas miseráveis da cidade, imaginem no Leblon. Vou ficar rico!!

Esses meus planos são, evidentemente, só uma provocação. Imaginem o primeiro telefonema que o 190 da Polícia Militar receberia, quinze minutos após o início das minhas "atividades" na Carlos Góis: "aqui é o doutor fulano de tal... Estão vendendo droga na porta da minha casa e eu exijo, imediatamente, uma providência.". Manchetes escandalosas dariam conta de que um grupo de traficantes teria cometido a suprema ousadia de instalar uma distribuição de entorpecentes em plena zona sul, no seio de uma comunidade respeitável, onde moram advogados, juízes e desembargadores. Em menos de duas horas haveria uma verdadeira blitzkriege: polícia civil, polícia militar, polícia federal
e exército, devolvendo, rapidamente, a paz à nossa respeitável Carlos Góis, poupando suas crianças do trágico destino de se transformarem em vapores do tráfico e de engrossar a aviltante cifra de 600 meninos assassinados por ano somente na cidade do Rio de Janeiro.

Por fim, resta uma singela pergunta: e no Morro do Alemão, no Vidigal, na Rocinha, no São Carlos, no Dona Marta, no Esqueleto, na Mineira, na Maré, no Encantado, no Pavão Pavãozinho, no Canta-Galo e em tantos outros sítios urbanos com jurisdição própria, onde o Estado, covardemente, está ausente?

Por que a humilde população que mora nesses endereços, a honestíssima vovó vizinha da boca de fumo, e que vê seu neto irremediavelmente ser cooptado pelo tráfico, não podem simplesmente chamar a polícia?

Se os senhores Governador e Ministro da Justiça quiserem eu posso levantar 40 endereços nos quais, hoje à noite, o tráfico de entorpecentes vai funcionar a céu aberto, com filas de usuários, educadamente postadas à espera do atendimento. Locais em que crianças estão sendo corrompidas, que mulheres estão ameaçadas, em que vidas são perdidas, em que autoridades policiais são aliciadas, em que o negócio floresce sem os riscos da rua Carlos Góis no Leblon.

O resto é conversa fiada e pose solene de candidato. Afinal, como ensinava Bertrand Russel, solenidade é, na maioria das vezes, somente um disfarce para a impostura.

Antônio Veronese é artista plástico

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